O veneno nosso de cada dia

Hoje o Comer & Beber viaja com o botânico Gil Felippe pela história das plantas que, mesmo tóxicas, entram cotidianamente na mesa de todos nós

Dê uma olhada naquela inocente maçã que repousa em sua geladeira. Ela parece tudo menos perigosa, com seus pigmentos vivos e polpa suculenta, não? De fato, comer uma maçã normalmente traz apenas benefícios à saúde. Isso, claro, se você descartar as sementes, que contêm glicosídeos cianogênicos, substância capaz de liberar o tóxico ácido cianídrico.

Calma, isso não é motivo pra atirar a fruta pela janela. Ingerir as sementes de uma única maçã não é perigoso, em geral, para um adulto (e, afinal, quem vai querer fazer isso?). Uma quantidade maior, no entanto, pode causar problemas, especialmente em crianças e animais domésticos, e mais ainda se as sementes forem mastigadas.

Os sintomas de envenenamento leve são dor de cabeça, tontura, confusão mental, ansiedade e vômito. Doses maiores causam dificuldade respiratória, aumento da pressão sanguínea e parada dos rins, podendo também levar à morte por parada respiratória.

Bom, a maçã ainda é recomendável para uma dieta saudável, mas talvez você nunca mais a olhe da mesma maneira. É justamente esse lado contraditório de alguns alimentos que o botânico Gil Felippe traz no livro "Venenosas: plantas que matam também curam". Didática e interessante, a publicação aborda o universo desses vegetais tanto pela perspectiva científica quanto histórica e cultural, mostrando que, antes de comermos um pãozinho sem maiores preocupações, os cereais precisaram ser domesticados, e os conhecimentos, adquiridos empiricamente - agradeça cada dor de barriga, vômito e eventuais mortes de seus antepassados.

Aprendizado

Nessa aventura alimentícia, nossos ancestrais guiavam-se pelas escolhas dos animais - se uma planta era boa pra eles, servia para todos; se não, devia ter sabor ruim ou veneno. Muitos desavisados, porém, possivelmente foram seduzidos pelas cores chamativas e beleza de determinadas plantas tóxicas.

Embora o critério dos animais seja válido, não é suficiente para cobrir todas as possibilidades. Felippe cita como exemplo o fruto do azevinho, vermelho e chamativo. Ao mesmo tempo em que é tranquilamente consumido por pássaros, é tóxico para humanos.

Com o desenvolvimento da ciência, em especial da farmacologia, da química e da nutrição, o homem aprendeu mais sobre aquilo que come. Hoje sabe-se, por exemplo, que uma mesma substância funciona como veneno ou remédio - a diferença está na quantidade administrada.

Também, ao longo dos anos, por cruzamentos sucessivos, pesquisadores foram eliminando toxinas das plantas interessantes pro consumo humano. Um dos casos mais interessantes nesse sentido é a batata.

Segundo o autor, a batatinha de países andinos, como Chile e Peru, assim como outros membros da família Solanácea (berinjela, tomate etc) originalmente era perigosa devido ao conteúdo de toxinas. Com o tempo, porém, ela foi domesticada e passou a ser intencionalmente plantada naqueles países há cerca de seis mil anos.

A batata é a quarta planta mais cultivada para alimentação, depois do trigo, do arroz e do milho. O sucesso de seu tubérculo na cozinha deve-se, em especial, ao alto valor energético e sabor relativamente neutro, que combina com inúmeras variações de molhos e temperos. Fonte de amido, pode ser consumida frita, assada ou cozida, quente ou fria, servir para fazer massas ou até bebidas alcoólicas, a exemplo da vodca polonesa.




Ciência e história

Apesar dos cruzamentos, ainda hoje a batata pode ser tóxica: quando permanecem expostos à luz, os tubérculos tornam-se verdes e produzem a solanina, um alcaloide tóxico que funcionam como mecanismo de defesa para a planta.

Segundo o autor, o envenenamento por solanina causa desordens gastrointestinais e neurológicas. Os sintomas incluem náusea, diarreia, vômito, dores de estômago, queimação da boca, arritmia do coração, dor de cabeça e vertigem, entre outros. Doses acima de 2mg a 5 mg por quilo corporal são fatais. Mas tudo isso é evitado apenas pelo cozimento da batata em alta temperatura (acima de 170º), que destrói a solanina.

Em "Venenosas", Felippe discorre também sobre plantas tóxicas usadas em paisagismo e jardinagem, as perigosas para animais e até para outras plantas. Mas o que interessa mesmo ao C&B é o conjunto de espécies utilizadas na cozinha.

Voltando à maçã, por exemplo, há outras frutas da mesma família (Rosaceae) cujas sementes apresentam glicosídeos ianogênicos. Nessa lista constam o damasco, o pêssego, a pera, a ameixa, a cereja etc. No caso do pêssego, mesmo venenosas, as sementes são aproveitadas para fazer licores - o amaretto dos italianos é um deles. O pessegueiro, juntamente com a macieira, é a árvore frutífera mais cultivada mundo afora.

Das tentativas de assassinato com plantas venenosas na Antiguidade, durante a Idade Média e na Renascença até o esmiuçar científico atual, que permite conhecer princípios ativos e quantidades adequadas para trazer benefícios ou prejuízos, foi uma longa jornada. "Venenosas" permite vislumbrar parte desse panorama, e é mais uma obra que demonstra a relevância dos estudos da alimentação para a sociedade.

Conheça a planta

MANDIOCA


A variedade chamada mandioca-brava é venenosa em razão da alta concentração de ácido cianídrico (enquanto a mandioca doce produz cerca de 20mg do ácido por quilo de raiz fresca, a brava produz cinquenta vezes esse valor). Todas as partes da planta apresentam os glicosídeos que são convertidos em ácido, mas a maior concentração está nas folhas. Na raiz, a maior quantidade´ da substância está na casca. Para consumir a mandioca brava, deve-se eliminar a casca, deixar a raiz mergulhada em água por várias horas e depois cozinhá-la. Assim, o veneno é eliminado.

BOTÂNICA
"VENENOSAS: PLANTAS QUE MATAM TAMBÉM CURAM"
GIL FELIPPE
R$ 49,00
352 PÁGINAS
2009
SENAC SP


ADRIANA MARTINS
REPÓRTER
Imagem Ilustrativa: Getty Image
Fonte: http://diariodonordeste.globo.com



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