Segurança Alimentar

Cuidados com a procedência dos produtos e comer de forma adequada devem fazer parte do cardápio de qualquer pessoa que se preocupe em aliar os prazeres da mesa à qualidade de vida. Em artigos inéditos, produzidos com exclusividade para a Revista E, a doutora em saúde pública e pesquisadora do departamento de nutrição da Universidade de Brasília (UnB) Elisabetta Recine e a doutora em alimentos e nutrição e pesquisadora do Núcleo de Estudos e ?Pesquisas em Alimentação (Nepa) da Universidade de Campinas (Unicamp) Miriam Corrêa de Carvalho dão a receita de uma refeição realmente saudável.

A Segurança Alimentar e Nutricional – os desafios para o Brasil

por Elisabetta Recine

Ao longo da história, o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) foi sendo alterado e aprimorado de uma visão que privilegiava a abordagem da produção e disponibilidade de alimentos para a incorporação das dimensões da utilização, cultural e ambiental, e, de maneira profundamente diferenciadora, a SAN passou a ser encarada como o instrumento concreto de organização das políticas públicas para a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). Para nós, brasileiras e brasileiros, o conceito que vigora atualmente foi aprovado na Segunda Conferência Nacional de SAN, realizada em Olinda, Pernambuco, em 2004. Segundo ele, a Segurança Alimentar e Nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. Essa definição foi, ainda, adotada pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, sancionada em setembro de 2006. Na definição de SAN, destacam-se estas duas dimensões complementares:

(1) a dimensão alimentar que abrange a produção e disponibilidade de alimentos, com as seguintes características:
• suficiência para atender à demanda;
• estabilidade e continuidade para garantir a oferta permanente e neutralizando as flutuações sazonais;
• autonomia na produção para o alcance de auto-suficiência nacional nos alimentos básicos;
• equidade para garantir o atendimento universal às necessidades nutricionais adequadas, de maneira a preservar ou recuperar a saúde em todas as etapas do curso da vida e nos diferentes grupos da população;
• sustentabilidade do ponto de vista agroecológico, social, econômico e cultural, com vistas a assegurar a SAN na presente e nas futuras gerações.

(2) a dimensão nutricional que abrange as relações entre o homem e o alimento, implicando:
• a escolha de alimentos saudáveis;
• o preparo dos alimentos com técnicas que preservem ou melhorem o valor nutricional e sanitário;
• o consumo alimentar adequado e saudável;
• as boas condições de saúde, higiene e de vida dos indivíduos para melhorar e garantir a adequada utilização biológica dos alimentos consumidos;
• a promoção dos cuidados com a saúde individual, da família e comunidade;
• o acesso aos serviços de saúde de forma oportuna e com resolutividade das ações prestadas;
• a promoção dos fatores ambientais que interferem na saúde e nutrição, como as condições psicossociais, econômicas, culturais, ambientais.

Além desses aspectos, temos, de maneira transversal a todos eles, a dimensão cultural – que dá sentido, além do biológico, aos tipos de alimentos que cultivamos, comercializamos e comemos. A cultura alimentar define os indivíduos e os povos. Também é fundamental estarmos atentos a como produzimos, distribuímos, comercializamos os alimentos. A origem das sementes, a qualidade da terra e da água. A sustentabilidade ambiental, as relações econômicas e sociais estabelecidas em todo o processo. E termos claro que a razão e o objetivo essenciais de toda ação que promova a SAN é a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada. Isto é, o direito inerente a todas as pessoas de ter acesso regular, permanente e irrestrito, quer diretamente, quer por meio de aquisições financeiras, a alimentos seguros e saudáveis, em quantidade e qualidade adequadas e suficientes, correspondentes às tradições culturais do seu povo e que garanta uma vida livre do medo, digna e plena nas dimensões física e mental, individual e coletiva. Portanto, do DHAA tem duas dimensões, a de estar livre da fome e a da alimentação adequada.

Este é o desafio que temos pela frente, com a Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional (Losan), ao assumirmos o conceito de SAN e DHAA como princípio – não temos mais “apenas o desafio de acabar com a fome”, mas fazê-lo através de uma alimentação saudável e adequada e segundo alguns princípios. São eles:

- Dignidade humana – Todas as pessoas devem ser tratadas com respeito, dignidade e valorizadas como seres humanos. Políticas públicas baseadas em direitos humanos reconhecem o indivíduo não como mero alvo de uma política, mas sim como titular de direitos humanos;
- Não-discriminação – O DHAA deve ser garantido sem discriminação de origem cultural, econômica ou social, etnia, gênero, idioma, religião, opção política ou de outra natureza. Isso, porém, não afasta a necessidade de que sejam realizadas ações afirmativas e enfoques prioritários em grupos vulneráveis;
- Prestação de contas (ou responsabilização) – A abordagem baseada em DHs requer o estabelecimento de metas e processos transparentes para os programas e ações. O Estado é responsável por suas ações perante os indivíduos e delas deve prestar contas;
- “Apoderamento” – Os indivíduos, por sua vez, precisam se apoderar das informações e instrumentos de DHs e dos programas para que possam reivindicar do Estado ações corretivas e compensações pelas violações de seus direitos;
- Participação – É essencial que as pessoas participem da definição das ações necessárias ao seu bem-estar e participem, de forma ativa e informada, do processo de planejamento e implementação de programas que tenham impacto em sua vida.

Como viram, não é pouco, mas a sociedade brasileira tem inúmeros exemplos de mobilização e conquistas que demonstram quanto é viável transpor esse desafio. A organização, participação e compromisso de todas e todos nós são a condição essencial para trilharmos esse caminho!

“Segurança Alimentar e Nutricional consiste na ?realização do direito de todos ao acesso regular ?e permanente a alimentos de qualidade”

Miriam Corrêa de Carvalho é doutora em alimentos e nutrição e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação (Nepa) da Universidade de Campinas (Unicamp)

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