A lembrança de um aroma
O nariz é a porta de entrada para as memórias, principalmente aquelas ligadas às nossas emoções. E, se for treinado, torna-se um aliado para manter o cérebro longe das doenças neurodegenerativas
por CÉSAR KURT
design GLENDA CAPDEVILLE
ilustração MELISSA LAGOA
Ah, o cheiro de bolo saindo do forno... Ele é capaz de nos remeter a momentos calorosos do passado, como aquelas tardes de domingo em que as avós preparavam delícias para agradar os netos. Na literatura, nenhum registro sobre o despertar de lembranças por meio do olfato é mais notável do que o narrado pelo escritor francês Marcel Proust no primeiro dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido. Ele descreve um episódio que ilustra bem o que hoje se conhece como memória involuntária, aquela que surge por mero acaso: o aroma do bolinho madeleine embebido no chá evoca no protagonista cenas da infância que trazem “prazer delicioso” e “poderosa alegria”. A ciência explica esse fenômeno — o olfato é tão importante quanto os outros sentidos na retenção das recordações e está indissociavelmente ligado às emoções, mais até do que a visão e a audição.
Um curioso estudo da Universidade de Mannheim, na Alemanha, mostra o efeito emotivo dos aromas. Os cientistas borrifaram essência de flores em um grupo de voluntários e cheiro de ovo podre em outro — ambos dormiam profundamente. Ao despertarem, os que inspiraram a substância fedorenta relataram pesadelos, enquanto os demais descreveram ótimos sonhos. “Inconscientemente, a pessoa relaciona um odor com uma experiência vivida”, justifica Elizabeth Quagliato, neurologista da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, que fica no interior paulista.
Esse elo fica mais evidente em pacientes com Alzheimer. “O sistema olfativo é o primeiro atingido pela doença neurodegenerativa que apaga as lembranças”, conta o psicobiológo americano Charles Wysocki, do Centro Monell dos Sentidos Químicos, na Filadélfia. Ou seja, além de passar a borracha nos registros do passado, o Alzheimer dificulta a percepção dos cheiros. Isso porque as duas regiões do cérebro — a da percepção de odores e a da memorização —, além de próximas, conversam bastante uma com a outra. Um teste olfativo feito na Universidade McGill, do Canadá, flagrou a perda da capacidade de perceber cheiros quando a doença ainda é incipiente. “Esse exame é extremamente sensível, apesar de ser muito simples e barato”, explica Elizabeth Quagliato.
Alzheimer, memória e olfato estão a tal ponto ligados que alguns especialistas chegam a suspeitar de que partículas específicas captadas pelo nariz seriam capazes de deflagrar o mal. “Isso não passa de uma hipótese, que fique bem claro, mas não descarto que o meio externo dê um empurrão em certas doenças neurodegenerativas”, especula a neurologista Arlete Hilbig, da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
Calma, isso não é motivo para tapar o nariz e respirar pela boca. Até porque experimentar odores os mais diversos — e conseqüentemente treinar o aparelho olfativo como um todo — é uma das maneiras de ao menos postergar as conseqüências nefastas dos males neurodegenerativos sobre as lembranças.
Sentidos para favorecer novas ligações entre os neurônios”, ensina Avelino Leonardo da Silva, neurofisiologista da Universidade Estadual de São Paulo, a Unesp, em Assis. “Já se sabe que pessoas com maior número dessas ligações e atividade mental mais desenvolvida têm menos probabilidade de desenvolver o Alzheimer”, diz ele.
Mas será que haveria meios de estimular o olfato e assim fortalecer a memória? A resposta é sim. Dois exercícios muito simples são capazes de afastar em parte a ameaça de males que enfraquecem as lembranças. O primeiro consiste basicamente em exigir o máximo do sistema olfativo por meio de práticas como cheirar um chá de baunilha ou uma comida diferente e até mesmo fazer outro caminho para o trabalho — o que, acredite, por mais que você não tenha consciência, implicaria novos odores, obrigando os neurônios a trabalhar dobrado.
O segundo jeito é tentar aperfeiçoar o olfato buscando identificar notas diferentes nos odores de sempre. É o que fazem rotineiramente os testadores de perfume e os enólogos, que, depois de muita prática, conseguem reconhecer os vários componentes de um aroma específico. “Esses exercícios devem ser constantes. Senão, o efeito dos estímulos regride depressa”, ressalva Avelino Leonardo da Silva.
Estratégias assim, não custa ressaltar, estão longe de ser uma solução definitiva para os males neurodegenerativos. No entanto, apurar o olfato, entregandose ao exercício de identificar perfumes os mais diversos, na certa ajuda a registrar na memória instantes da vida que merecem ser resgatados depois.
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por CÉSAR KURT
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ilustração MELISSA LAGOA
Ah, o cheiro de bolo saindo do forno... Ele é capaz de nos remeter a momentos calorosos do passado, como aquelas tardes de domingo em que as avós preparavam delícias para agradar os netos. Na literatura, nenhum registro sobre o despertar de lembranças por meio do olfato é mais notável do que o narrado pelo escritor francês Marcel Proust no primeiro dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido. Ele descreve um episódio que ilustra bem o que hoje se conhece como memória involuntária, aquela que surge por mero acaso: o aroma do bolinho madeleine embebido no chá evoca no protagonista cenas da infância que trazem “prazer delicioso” e “poderosa alegria”. A ciência explica esse fenômeno — o olfato é tão importante quanto os outros sentidos na retenção das recordações e está indissociavelmente ligado às emoções, mais até do que a visão e a audição.
Um curioso estudo da Universidade de Mannheim, na Alemanha, mostra o efeito emotivo dos aromas. Os cientistas borrifaram essência de flores em um grupo de voluntários e cheiro de ovo podre em outro — ambos dormiam profundamente. Ao despertarem, os que inspiraram a substância fedorenta relataram pesadelos, enquanto os demais descreveram ótimos sonhos. “Inconscientemente, a pessoa relaciona um odor com uma experiência vivida”, justifica Elizabeth Quagliato, neurologista da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, que fica no interior paulista.
Esse elo fica mais evidente em pacientes com Alzheimer. “O sistema olfativo é o primeiro atingido pela doença neurodegenerativa que apaga as lembranças”, conta o psicobiológo americano Charles Wysocki, do Centro Monell dos Sentidos Químicos, na Filadélfia. Ou seja, além de passar a borracha nos registros do passado, o Alzheimer dificulta a percepção dos cheiros. Isso porque as duas regiões do cérebro — a da percepção de odores e a da memorização —, além de próximas, conversam bastante uma com a outra. Um teste olfativo feito na Universidade McGill, do Canadá, flagrou a perda da capacidade de perceber cheiros quando a doença ainda é incipiente. “Esse exame é extremamente sensível, apesar de ser muito simples e barato”, explica Elizabeth Quagliato.
Alzheimer, memória e olfato estão a tal ponto ligados que alguns especialistas chegam a suspeitar de que partículas específicas captadas pelo nariz seriam capazes de deflagrar o mal. “Isso não passa de uma hipótese, que fique bem claro, mas não descarto que o meio externo dê um empurrão em certas doenças neurodegenerativas”, especula a neurologista Arlete Hilbig, da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
Calma, isso não é motivo para tapar o nariz e respirar pela boca. Até porque experimentar odores os mais diversos — e conseqüentemente treinar o aparelho olfativo como um todo — é uma das maneiras de ao menos postergar as conseqüências nefastas dos males neurodegenerativos sobre as lembranças.
Sentidos para favorecer novas ligações entre os neurônios”, ensina Avelino Leonardo da Silva, neurofisiologista da Universidade Estadual de São Paulo, a Unesp, em Assis. “Já se sabe que pessoas com maior número dessas ligações e atividade mental mais desenvolvida têm menos probabilidade de desenvolver o Alzheimer”, diz ele.
Mas será que haveria meios de estimular o olfato e assim fortalecer a memória? A resposta é sim. Dois exercícios muito simples são capazes de afastar em parte a ameaça de males que enfraquecem as lembranças. O primeiro consiste basicamente em exigir o máximo do sistema olfativo por meio de práticas como cheirar um chá de baunilha ou uma comida diferente e até mesmo fazer outro caminho para o trabalho — o que, acredite, por mais que você não tenha consciência, implicaria novos odores, obrigando os neurônios a trabalhar dobrado.
O segundo jeito é tentar aperfeiçoar o olfato buscando identificar notas diferentes nos odores de sempre. É o que fazem rotineiramente os testadores de perfume e os enólogos, que, depois de muita prática, conseguem reconhecer os vários componentes de um aroma específico. “Esses exercícios devem ser constantes. Senão, o efeito dos estímulos regride depressa”, ressalva Avelino Leonardo da Silva.
Estratégias assim, não custa ressaltar, estão longe de ser uma solução definitiva para os males neurodegenerativos. No entanto, apurar o olfato, entregandose ao exercício de identificar perfumes os mais diversos, na certa ajuda a registrar na memória instantes da vida que merecem ser resgatados depois.
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