O efeito gafanhoto
Colunista explica como os inseticidas usados em áreas mais quentes migram para regiões polares
Em seu estado de equilíbrio, a natureza parece ter solução para todos os problemas que nos afligem, como o de se livrar de resíduos. As plantas absorvem nutrientes do solo e sintetizam alimento para si e para o restante da cadeia alimentar a partir de carbono atmosférico (CO 2 ), luz e água. Os herbívoros e carnívoros consomem a energia das plantas e decompõem o alimento em elementos simples como CO 2 , água e compostos minerais, que podem ser utilizados pelas plantas para recomeçar tudo outra vez. Restos e raspas são consumidos por vermes, insetos, bactérias e fungos. Só sobram os ossos e dentes que nos permitem reconstituir o passado da biosfera.
Essa é uma grande simplificação, claro, mas aponta para um fato fundamental: o ciclo de matéria é fechado, a matéria muda de forma e lugar, mas nunca desaparece. O ciclo da energia, ao contrário, é aberto, e move o ciclo da matéria como a água do rio move o moinho.
Isso significa que nunca podemos nos livrar totalmente daquilo que lançamos no ambiente, sejam compostos naturais como os metais, que extraímos de depósitos inertes e emitimos para ar, água, solos e, portanto, alimentos, ou as milhares de substâncias sintéticas que inventamos para os mais diversos fins e que acabam sendo lançadas no ambiente, porque... o ciclo da matéria é fechado. Nos preocupamos, com boas razões, com os rejeitos radioativos que levarão séculos para decair, mas esquecemos que o carbono, o chumbo, o arsênico e tantos outros são eternos.
Dispersão de poluentes
Um bom exemplo dos problemas que esse ciclo nos traz é a dispersão ambiental dos compostos organoclorados, como o DDT (sigla para dicloro-difenil-tricloroetano), inseticida hoje banido para uso doméstico e agrícola e admitido apenas para campanhas de saúde pública em caso de emergência sanitária. Nos anos 1960, seu uso doméstico era intenso no Brasil, para controle de pulgas, piolhos, mosquitos, baratas etc. A partir da década de 1970, com a sua proibição, o DDT foi substituído por substâncias mais caras, menos tóxicas e, sobretudo, menos persistentes. Embora o composto não seja mais usado, o termo dedetização continua sendo de uso corrente.
A persistência é um dos principais problemas dos organoclorados e seus produtos de degradação. Anos após seu banimento, continuamos detectando essas substâncias no leite materno humano, em peixes e outros alimentos, mesmo em áreas remotas do planeta, porque são resistentes às vias de degradação naturais.
O DDT era considerado uma maravilha tecnológica, até aparecerem os efeitos em aves – em particular sobre a águia calva, símbolo nacional americano –, descritos por Raquel Carsson em seu livro seminal Primavera silenciosa. Silenciosa porque não havia mais aves que a cantassem. Os primeiros estudos sobre a dispersão desses poluentes analisavam amostras de áreas contaminadas, mas, para avaliar os resultados, era preciso compará-los com aqueles obtidos em áreas remotas, onde supostamente as concentrações seriam muito mais baixas.
Qual não foi a surpresa quando se constatou que ocorria exatamente o contrário! Nas áreas mais frias do planeta, como as áreas polares ou de maior altitude, os níveis de DDT em carnívoros eram muito mais elevados do que em carnívoros das áreas contaminadas, embora esses compostos nunca tivessem sido usados naquelas regiões.
A lógica por trás disso é que esses compostos são voláteis e emitidos mais intensamente para a atmosfera em áreas mais quentes. Eles então são transportados pelos ventos e condensam-se em áreas mais frias, depositando-se novamente no ambiente até a próxima oportunidade de volatilização.
Assim, haveria uma destilação global desses poluentes, que iriam se dirigindo aos saltos para as áreas polares ou o topo das montanhas – daí o nome “efeito gafanhoto” que dá titulo a esta coluna. Foi assim que os inseticidas foram parar no Ártico.
Persistência que cruza fronteiras
Os inseticidas domésticos atuais são de baixa persistência e menor toxicidade que o DDT, mas diversos poluentes orgânicos de uso atual continuam pulando fronteiras por aí, sempre na companhia dos poluentes persistentes já banidos, mas que continuam circulando, porque... são persistentes, ora.
Não é a toa que está na moda usar papel reciclado e não branqueado. Derruba menos florestas por ser reciclado e não requer uso de cloro por não ser branqueado. Por que o fato de não adicionar cloro é importante? Porque a combinação de cloro com compostos orgânicos é justamente o que confere a esses produtos poluentes suas características, incluindo a persistência.
No tratamento da água para consumo, por exemplo, adicionamos cloro à água como biocida para controlar infecções. Mas o cloro se combina com a matéria orgânica dissolvida e forma compostos organoclorados “naturais”, que têm em comum com os sintéticos os efeitos neurotóxicos, hepatotóxicos, de disrupção endócrina e cancerização.
Mas esses compostos estão em concentrações muito baixas, assim como todos os demais poluentes da sopa tóxica diluída que inalamos e ingerimos. Então tudo bem, certo?
Não, nada bem. Isso porque muitos poluentes exibem o que chamamos de biomagnificação: o que o ambiente dilui, às vezes a cadeia alimentar concentra. Mas isso é assunto para outra ocasião...
O Natal se aproxima. Não perca o apetite por causa desta coluna. Se a consciência de que o ciclo de matéria é fechado contribuir para moderá-lo, já será um avanço.
Feliz Natal e Ano Novo a todos, por um 2009 com boas novas na área ambiental também.
Jean Remy Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
23/12/2008
Em seu estado de equilíbrio, a natureza parece ter solução para todos os problemas que nos afligem, como o de se livrar de resíduos. As plantas absorvem nutrientes do solo e sintetizam alimento para si e para o restante da cadeia alimentar a partir de carbono atmosférico (CO 2 ), luz e água. Os herbívoros e carnívoros consomem a energia das plantas e decompõem o alimento em elementos simples como CO 2 , água e compostos minerais, que podem ser utilizados pelas plantas para recomeçar tudo outra vez. Restos e raspas são consumidos por vermes, insetos, bactérias e fungos. Só sobram os ossos e dentes que nos permitem reconstituir o passado da biosfera.
Essa é uma grande simplificação, claro, mas aponta para um fato fundamental: o ciclo de matéria é fechado, a matéria muda de forma e lugar, mas nunca desaparece. O ciclo da energia, ao contrário, é aberto, e move o ciclo da matéria como a água do rio move o moinho.
Isso significa que nunca podemos nos livrar totalmente daquilo que lançamos no ambiente, sejam compostos naturais como os metais, que extraímos de depósitos inertes e emitimos para ar, água, solos e, portanto, alimentos, ou as milhares de substâncias sintéticas que inventamos para os mais diversos fins e que acabam sendo lançadas no ambiente, porque... o ciclo da matéria é fechado. Nos preocupamos, com boas razões, com os rejeitos radioativos que levarão séculos para decair, mas esquecemos que o carbono, o chumbo, o arsênico e tantos outros são eternos.
Dispersão de poluentes
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A persistência é um dos principais problemas dos organoclorados e seus produtos de degradação. Anos após seu banimento, continuamos detectando essas substâncias no leite materno humano, em peixes e outros alimentos, mesmo em áreas remotas do planeta, porque são resistentes às vias de degradação naturais.
O DDT era considerado uma maravilha tecnológica, até aparecerem os efeitos em aves – em particular sobre a águia calva, símbolo nacional americano –, descritos por Raquel Carsson em seu livro seminal Primavera silenciosa. Silenciosa porque não havia mais aves que a cantassem. Os primeiros estudos sobre a dispersão desses poluentes analisavam amostras de áreas contaminadas, mas, para avaliar os resultados, era preciso compará-los com aqueles obtidos em áreas remotas, onde supostamente as concentrações seriam muito mais baixas.
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A lógica por trás disso é que esses compostos são voláteis e emitidos mais intensamente para a atmosfera em áreas mais quentes. Eles então são transportados pelos ventos e condensam-se em áreas mais frias, depositando-se novamente no ambiente até a próxima oportunidade de volatilização.
Assim, haveria uma destilação global desses poluentes, que iriam se dirigindo aos saltos para as áreas polares ou o topo das montanhas – daí o nome “efeito gafanhoto” que dá titulo a esta coluna. Foi assim que os inseticidas foram parar no Ártico.
Persistência que cruza fronteiras
Os inseticidas domésticos atuais são de baixa persistência e menor toxicidade que o DDT, mas diversos poluentes orgânicos de uso atual continuam pulando fronteiras por aí, sempre na companhia dos poluentes persistentes já banidos, mas que continuam circulando, porque... são persistentes, ora.
Não é a toa que está na moda usar papel reciclado e não branqueado. Derruba menos florestas por ser reciclado e não requer uso de cloro por não ser branqueado. Por que o fato de não adicionar cloro é importante? Porque a combinação de cloro com compostos orgânicos é justamente o que confere a esses produtos poluentes suas características, incluindo a persistência.
No tratamento da água para consumo, por exemplo, adicionamos cloro à água como biocida para controlar infecções. Mas o cloro se combina com a matéria orgânica dissolvida e forma compostos organoclorados “naturais”, que têm em comum com os sintéticos os efeitos neurotóxicos, hepatotóxicos, de disrupção endócrina e cancerização.
Mas esses compostos estão em concentrações muito baixas, assim como todos os demais poluentes da sopa tóxica diluída que inalamos e ingerimos. Então tudo bem, certo?
Não, nada bem. Isso porque muitos poluentes exibem o que chamamos de biomagnificação: o que o ambiente dilui, às vezes a cadeia alimentar concentra. Mas isso é assunto para outra ocasião...
O Natal se aproxima. Não perca o apetite por causa desta coluna. Se a consciência de que o ciclo de matéria é fechado contribuir para moderá-lo, já será um avanço.
Feliz Natal e Ano Novo a todos, por um 2009 com boas novas na área ambiental também.
Jean Remy Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
23/12/2008
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