'Caminho das Indias' apresenta visão equivocada sobre esquizofrenia

Entendo que é muito importante a abordagem de temas da área de saúde mental na TV.


São temas que ainda geram dúvidas, medos, preconceitos, estigmas e uma série de sentimentos complexos. A desinformação é preponderante.

O ator Bruno Gagliasso que vive o personagem Tarso, em Caminho das Indias, está tendo um desempenho bom no papel de esquizofrênico. Porém, a esquizofrenia, um transtorno mental grave de causa desconhecida, que atinge 1% da população, no Brasil, cerca de 1,8 milhão de pessoas, precisaria ser abordada de uma forma mais real, como ela realmente ocorre na prática da psiquiatria.

Tal doença nunca acontece abruptamente como a novela deixa transparecer ou por influência do meio, como a pressão do pai (Ramiro, vivido por Humberto Martins) ou a futilidade e individualismo excessivo da mãe (Melissa, interpretada por Christiane Torloni). Pode haver alguns “gatilhos” para a esquizofrenia como drogas (ex. uso de maconha), morte ou perda de alguém, além de fatores associados como problemas de parto, demora para a criança andar e variações genéticas. Mas, a novela insiste em dar a ideia que a esquizofrenia de Tarso é fruto de uma família desestruturada, um erro grave. Tem início na adolescência e no começo da vida adulta, é mais precoce no sexo masculino. Cerca de 90% dos casos são diagnosticados entre 15 e 25 anos de idade. Quanto à precocidade da esquizofrenia masculina, ainda não há uma certeza quanto aos motivos. Sabe-se que o estrógeno (hormônio feminino) pode ter um papel protetor na mulher, até no intraútero. Nas mulheres, há alguns casos que se iniciam após os 40 anos de idade.

Sei que é ficção, mas há equívocos inquestionáveis e desatualizados. Sequer o diagnóstico de esquizofrenia, pela falta de seguimento médico por seis meses, poderia ser feito. Inicialmente, utilizamos o termo “ Transtorno Psicótico Agudo”, caracterizado por alterações de pensamento (pensamento desorganizado), lógica, juízo e crítica. Tais pessoas têm alterações de sensopercepção caracterizadas por alucinações visuais (é muito mais comum o esquizofrênico ver vultos e não imagens nítidas como na novela) e alucinações auditivas (ouvem vozes de comando, que conversam entre si sobre o próprio paciente), além dos delírios (pensamentos implausíveis, incongruentes com a realidade, que só o esquizofrênico consegue acreditar, mesmo quando confrontado com tal irracionalidade).

São comuns o delírio de conteúdo persecutório. O Transtorno Psicótico Agudo pode evoluir tanto para a esquizofrenia como para o transtorno bipolar, por exemplo.

Recentes metanálises, estudos científicos bem consistentes, demonstram, claramente, que o esquizofrênico não é mais violento que qualquer um de nós. Só mesmo em situações de uso abusivo de álcool e drogas isso pode se alterar. Mostrar na novela o Tarso atirando no Murilo (Caco Ciocler) é ruim. Explico: embora, em um surto, isso até possa ocorrer, na prática, é exceção e não regra. Pode causar confusão, dúvidas e medos desnecessários nas cabeças de amigos e familiares, aumentando, involuntariamente, o preconceito e pavor que as pessoas desinformadas costumam ter dos pacientes com esquizofrenia, um autêntico “tiro pela culatra” dos autores e diretores globais.

Um cuidado esmerado há que se ter na abordagem de tais temas delicados e que sensibilizam a todos nós.

Parentes, como irmãos e avós, em situações comprovadas de riscos decorrentes dos surtos psicóticos, podem e devem intervir, até pela questão da lei. Todos devem ter acesso ao tratamento correto, se necessário, até com internação breve - que jamais deve ser encarada como punição, isso seria um retrocesso. O avô do Tarso sabe de tudo, é um empresário inteligente e vencedor, grande amigo do psiquiatra. O mesmo refere-se à irmã dele e todos só assistem às sucessivas tragédias por tempo indeterminado, de forma passiva?

Atendo muitos pacientes, as famílias costumam resistir aos tratamentos inicialmente, mas nunca vi uma família resistente a ponto de estar cometendo um crime de omissão de socorro. Quem entra em surto psicótico, fica nesse surto por um determinado período fixo, não alterna períodos de lucidez com outros de total irracionalidade como a novela demonstra erroneamente.

Surtos de esquizofrenia provocam perda de neurônios

Quanto mais tempo em surto, quanto maior o número de surtos psicóticos, maior a perda de neurônios, maior e mais rápido o declínio do paciente. Os pais, por mais preconceito, querem sempre o melhor para os filhos, buscam, sim, pareceres de médicos competentes, mesmo que tenham crenças opostas. Há danos cerebrais irreversíveis que podem ser evitados com o tratamento medicamentoso precoce. Terapias alternativas ou complementares podem ajudar, mas o tratamento é com antipsicótico, seja ele típico ou atípico.Isso tem que ser mais enfatizado na novela e rapidamente.

Outro grande problema que envolve o tratamento é que metade dos esquizofrênicos não adere ao tratamento, o que aumenta em 88% as chances de recaída, segundo estudo desenvolvido pelo Professor Hélio Élkis, da Faculdade de Medicina da USP.

A falta de aderência decorre de vários fatores:

1) Estigma da doença;

2) Falta de informação e de orientação do paciente e familiares;

3) Comorbidades (associações com outros transtornos mentais) como depressão e alcoolismo;

4) Nos surtos psicóticos a pessoa perde a noção de realidade e conexão com o mundo concreto, precisando que alguém administre a medicação para ela (o que pode ser difícil) ou até mesmo que a medicação seja por outra via (injeção intramuscular);

5) É difícil para pacientes e familiares aceitarem a realidade de uma doença crônica que requer uso contínuo de medicação antipsicótica pelo resto da vida, alguns acreditam em “milagres” e curas, tentam caminhos alternativos.

Alguns esquizofrênicos me relatam que se sentem excluídos e marginalizados na sociedade. Infelizmente, isso ainda ocorre. A sociedade tem um conceito falso e distorcido de que quem toma medicamento psiquiátrico é “louco”, “insano”. Isso também leva muitos esquizofrênicos a relutarem contra a doença, já que na opinião deles seria “uma sentença de incapacidade eterna”.

Algumas religiões ou seitas também desqualificam doenças mentais, acreditam que tais pessoas estariam possuídas por espíritos ou demônios. Felizmente, constituem-se na minoria, mas lesam muitos esquizofrênicos.

O psiquiatra interpretado pelo Stênio Garcia, um excelente ator, poderia também ter outro perfil; é engraçado, mas mostra uma figura estereotipada do psiquiatra.

Muitos pacientes e familiares acham que psiquiatra é “médico de louco”, poderiam ter construído, nessa ficção, um personagem mais próximo ao estágio atual das neurociências, incluindo a psiquiatria e o profissional padrão. Dá interpretações românticas para a esquizofrenia, o que fica muito distante da realidade.
Apenas cerca de 14% dos esquizofrênicos têm um único surto durante suas vidas, enquanto mais de 40% dos pacientes, apesar dos avanços médicos significativos das últimas décadas, têm perda cognitiva e de funcionamento do cérebro.

Em cada crise, infelizmente, tais pacientes vão piorando.

Por fim, a demora ou ausência de tratamento, é muito arriscado. Em média, até 50% dos pacientes esquizofrênicos tentam o suicídio e cerca de 10% concretizam. Muitas vezes tais pessoas têm consciência que têm uma doença crônica, para o resto da vida. Daí a importância de grupos de autoajuda, terapia ocupacional, arteterapia, reabilitação psicossocial e psicoterapia. Mas, repito, o medicamento é imprescindível, deve ser tomado por toda a vida e não é de tarja preta como já foi dito, de forma infeliz, na novela.

SERVIÇO

Os grupos de autoajuda como a ABRE Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia (www.soesq.org.br) também ajuda muito na conscientização de pacientes e familiares, auxiliando na reabilitação psicossocial.

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