Nutrição parenteral domiciliar está subutilizada no Brasil?
O primeiro registro de uma atuação organizada na assistência médica domiciliar geral data de 1780. Trata-se da ação de uma associação de enfermeiras visitadoras fundada por mulheres, de cunho filantrópico, no Hospital de Boston (nos Estados Unidos da América, EUA) (1). No Brasil, as primeiras atividades domiciliares aconteceram muito mais tarde, em 1919, com a criação do Serviço de Enfermeiras Visitadoras no Rio de Janeiro. Apenas nos anos 60 foi observada uma valorização nacional dos âmbitos familiares comunitários, com espaço para atendimento de saúde. Nessa época, ocorreu a implantação do programa pioneiro de assistência domiciliar do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo (2).
Dentre os potenciais benefícios do atendimento domiciliar encontram-se diminuição das internações e custos hospitalares, ausência do risco de infecção hospitalar, manutenção do paciente no núcleo familiar e o aumento da qualidade de vida deles e de seus familiares (2-5). Entretanto, essa prática envolve aspectos psicológicos e sociais que devem ser considerados. Entre eles, inclui-se o fato de que o ambiente domiciliar é de controle do paciente e seus familiares e a nova rotina causada pela presença de profissionais de saúde pode trazer conflitos que, se não forem detectados e administrados, podem comprometer o sucesso da terapia (6).
Embora a experiência brasileira em assistência domiciliar tenha poucos anos, é cada vez maior a tendência de se prosseguir em nível domiciliar os cuidados hospitalares. Dentre as atividades nela inseridas, a terapia nutricional artificial domiciliar temporária ou definitiva vem se consolidando na prática terapêutica do Brasil e tem permitido promover ou manter o estado nutricional de doentes impossibilitados de utilizar adequadamente o trato digestivo (7). No entanto, sua indicação geralmente é de terapia enteral e, apesar dos benefícios que a terapia nutricional parenteral pode trazer para pacientes com síndrome de intestino curto (SIC), fístula intestinal de alto débito, íleo paralítico prolongado, enterite actínica, entre outros, sua utilização ainda abrange um número restrito de pacientes, mesmo com o crescimento que vem sofrendo nos últimos anos (8). A menor utilização da terapia nutricional parenteral domiciliar em relação à enteral pode estar associada, dentre outros fatores, aos riscos de infecção de cateter e de complicações metabólicas a ela associados (9).
Resultados de estudos com terapia nutricional parenteral domiciliar ainda são escassos na literatura científica nacional. O primeiro registro do uso de nutrição parenteral domiciliar no país foi feito em criança com apenas 24 horas de vida submetida a ressecção total de intestino delgado e ceco, devido a necrose irreversível causada por volvo do intestino médio. Nesse relato, o autor constatou a viabilidade do desenvolvimento de terapia nutricional parenteral em ambiente domiciliar e destacou a importância dessa prática em propiciar um maior conforto aos familiares (3).
Em 1981, Rasslan e colaboradores relataram benefício na manutenção do estado nutricional de paciente portador de SIC sob essa prática terapêutica (10). Em pediatria, também se desenvolveu estudo em 19 crianças portadoras da síndrome de intestino curto, tratadas inicialmente em ambiente hospitalar, que receberam indicação de nutrição parenteral domiciliar por períodos que variaram de quatro meses a quatro anos e meio, após orientação dos pais quanto aos cuidados na manipulação de cateteres e soluções parenterais. Ao longo do tratamento nutricional parenteral domiciliar, todos os pacientes apresentaram ganho ponderal, crescimento e desenvolvimento satisfatórios, de maneira semelhate à obtida durante nutrição oral. As complicações mais freqüentes incluíram obstruções do cateter (2 a 6 vezes em cada caso), alterações hepáticas (em todos os pacientes) e infecção associada ao cateter de nutrição parenteral (2 a 4 episódios por paciente). O autor encontrou uma taxa de sobrevida com alta do tratamento de 37%. Do total de óbitos ocorridos (n = 12), 2 foram associados a complicações relacionadas à nutrição parenteral. Com base nos resultados encontrados, o pediatra autor do trabalho conclui que “a nutrição parenteral domiciliar em crianças com SIC traz benefícios ao seu tratamento, com redução do período de internação hospitalar, tornando possível a adaptação funcional do intestino remanescente e manutenção do estado nutricional com via oral exclusiva” (4).
Empresas privadas de nutrição vêm investindo na terapia nutricional domiciliar no Brasil. Nesse sentido, em sua experiência de 15 anos, o Grupo de Nutrição Humana (GANEP) registrou atendimento de 17 pacientes (8 homens e 9 mulheres entre 11 e 71 anos) em regime de nutrição parenteral domiciliar. Todos os pacientes foram submetidos à cirurgia abdominal e apresentavam SIC (n = 15), câncer intestinal obstrutivo (n = 1) ou pseudo-obstrução intestinal neurogênica (n = 1). No início da terapia nutricional parenteral domiciliar, a perda de peso em relação ao peso usual foi
variável, sendo inexistente em quatro pacientes e de até 32% em um paciente. A complicação mais freqüente constituiu em contaminação de cateter, com pelo menos 1 episódio em 12 dos pacientes. Outras complicações incluíram desidratação (n = 9), acidose metabólica (n = 6), anemia (n = 6) e vômitos (n = 6). A mortalidade foi de 17% e atingiu pacientes com SIC com seis meses a sete anos da doença (9).
De maneira geral, a experiência brasileira publicada até o momento, apesar de ser pequena, indica que a aplicação da terapia nutricional parenteral é factível e recomendável. No entanto, apesar de a utilização dessa prática vir crescendo no Brasil, ela ainda se restringe a um número pequeno de pacientes em relação à literatura internacional, em que se encontra um quadro diferente do nosso, com razão de até 1:1 entre uso de terapia enteral e parenteral em pacientes com câncer sob terapia nutricional domiciliar (11). A necessidade de se expandir o uso da terapia parenteral domiciliar assume importância se se considerar que sua indicação atinge principalmente idosos e que, a partir do ano 2020, a população brasileira sofrerá um alargamento da população geriátrica (5). Os dados mostram ainda que a contaminação de cateter é uma complicação freqüente, que implica na participação de uma equipe multiprofissional capaz de dar treinamento ao paciente e ao cuidador, além de monitorar e acompanhar constantemente seu desenvolvimento. Dessa forma, a conscientização e a colaboração dos pacientes, familiares e responsáveis são fundamentais para o sucesso dessa terapia (4,9).
A escassez de estudos em terapia nutricional parenteral na literatura científica brasileira pode hipoteticamente constituir reflexo da subutilização dessa prática no tratamento de diferentes populações de pacientes no país e contribuir para que esse quadro se prolongue. Essa observação aponta para a necessidade de se desenvolverem novos estudos que ofereçam dados consistentes de sua segurança, eficácia e efetividade na recuperação/manutenção do estado nutricional e na qualidade de vida dos usuários. Os resultados podem contribuir para o aumento do uso dessa prática, oferecendo experiência, conhecimentos e segurança para os profissionais de saúde ampliarem sua indicação e para os pacientes usufruírem dos potenciais benefícios a ela associados.
Raquel Susana Torrinhas
Bióloga-chefe da Equipe de Metabologia e Nutrição em Cirurgia do Laboratório de Fisiologia e Distúrbios Esfincterianos (LIM 35) da Disciplina de Cirurgia do Aparelho Digestivo do Departamento de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Mestre em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Referências:
1. Rice R. Home care nursing pratice: historical prespective and philosophy of care. In: Rice R. Home care nursing practice: concepts and application. Stª Louis: Mosby (USA); 2001. p.3-14.
2. Fabrício, SCC, Wehbe G, Nassur FB, Andrade JI. Assistência domiciliar: A experiência de um hospital privado do interior paulista. Rev Latino-am Enf. 2004;12:721-6.
3. Brito IA, Mathias AL, Tannuri U, Bastos JC. Sobrevida prolongada e nutrição parenteral domiciliar em criança submetida à ressecção total do intestino grosso e ceco. J Pediatr. 1982;52:223-8.
4. Tannuri U. Síndrome do intestino curto na criança – tratamento com nutrição parenteral domiciliar. Rev Assoc Med Brás. 2004; 50:330-7.
5. Falcão HA. “Home Care” – uma alternativa ao atendimento da saúde. Med On Line Volume 2 - Número 7 - Ano II (Jul/Ago/Set de 1999) - Disponível em: http://www.medonline.com.br. Acessado em 31/05/07.
6. Floriani CA, Schramm FR. Atendimento domiciliar ao idoso: problema ou solução? Cad. Saúde Pública 2004;20:986-94.
7. Rasslan S, Rolim E, Fava J, Mandaia Neto J, Chaves AF. Nutrição parenteral domiciliar. Ver Paul Méd. 1983;1001:222-7.
8. Borges VC, Waitzberg DL, Teixeira da Silva ML, et al. Nutrição domiciliar:uma experiência no Brasil. In Waitzberg DL, Nutrição Parenteral na prática clínica, 3ª ed - Atheneu, 2001. pp.977-87.
9. Shronts EP, Ireton-Jones C, Winkler MF, Williams DM. Bases da Terapia Nutricional domiciliar. In Waitzberg DL, Nutrição Parenteral na prática clínica, 3ª ed – Atheneu. 2001. pp.949-87,
10. Rasslan, S; Pacheco, A. M; Scalissi, N. M; Montila, G; Zucatti, M. L. Sobrevivencia prolongada após resseccao intestinal extensa e nutricao parenteral domiciliar. AMB rev. Assoc. Med. Bras. 1981;27(11):331-3.
11. Howard L. Home parenteral and enteral nutrition in cancer patients. Cancer, 1993;72(Suppl):3531-3541.
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