Eutanásia: A favor ou contra?


De um lado estão aqueles que defendem a vida como bem supremo. De outro, os que sustentam a liberdade de escolha como direito inerente. Por trás deste embate está um pensamento dualista que opõe vida e morte e não distingue viver de sobreviver
Por Scarlett Marton

A eutanásia tornou-se uma questão central nos debates de Bioética na atualidade. Em geral, distingue-se a eutanásia da ortotanásia e da distanásia. Por eutanásia entende-se a conduta médica que apressa a morte de um paciente incurável e em terrível sofrimento.

Por ortotanásia designa-se a suspensão dos meios medicamentosos ou artificiais de manutenção da vida de um paciente em coma irreversível. E, por distanásia, aponta-se o emprego de todos os meios terapêuticos possíveis, inclusive os extraordinários e experimentais, num paciente terminal.

Enquanto com a ortotanásia se aceita o processo natural de morrer, com a distanásia, pela obstinação terapêutica, se provocam distorções. Num caso, permite-se ao paciente ir ao encontro da morte; no outro, a ele se impõe um tratamento insistente, desnecessário e prolongado, sem nenhuma certeza de sua eficácia.

Com a eutanásia, adianta-se a morte, atendendo à vontade expressa e manifesta do paciente, no sentido de evitar sofrimentos que ele julga insuportáveis ou de encurtar uma existência que acredita penosa e sem sentido.

Vista por alguns como um suicídio assistido, a eutanásia inscreve-se numa situação em que o paciente quer morrer, mas, por incapacidade física, não consegue realizar sozinho o seu desejo. Aliás, no seu sentido etimológico, eutanásia significa "boa morte". Ela se diferencia radicalmente da distanásia, que importa em submeter o paciente a quaisquer condições para mantê-lo vivo.

Mas também se diferencia da ortotanásia que, chamada às vezes de eutanásia por omissão, implica decidir não conservar a vida do paciente por meios artificiais. Distinguem-se ainda diversos tipos de eutanásia: ativa, se a morte é provocada, ou passiva, se ela advém por omissão; voluntária, quando o paciente expressa e manifesta a vontade de morrer, ou involuntária, quando um indivíduo, grupo ou sociedade decide pôr fim à vida do paciente, sem que este exprima e manifeste a sua vontade (é o caso, por exemplo, de deficientes mentais, dementes ou inconscientes).

Entre nós, aceita-se a distanásia; no direito brasileiro, não se considera, neste caso, a conduta médica ilícita nem culpável. Admite-se, sob condições, a ortotanásia; julga-se a conduta médica lícita do ponto de vista jurídico, quando não significa a redução do período natural de vida do paciente nem caracteriza abandono do incapaz. Rejeita-se categoricamente a eutanásia; como conduta típica, ilícita e culpável, ela caracteriza homicídio, sendo indiferente que o paciente com ela concorde ou mesmo por ela implore.




"Se quiseres poder suportar a vida, fica pronto para aceitar a morte"  FREUD




Na antiguidade greco-romana, reconhecia- se o direito de morrer; era o que permitia aos doentes desesperançados pôr fim à própria vida, contando por vezes com o auxílio de outrem. Com o cristianismo introduziu-se a noção de sacralidade da vida, passando-se a concebê-la como um dom de Deus a ser preservado; foi o que levou à extinção das práticas dos antigos.

No século XVII, com Francis Bacon, a questão da eutanásia migrou para o domínio da medicina; começou-se a usar o vocábulo para expressar a ideia de que cabia ao médico aliviar os sofrimentos dos doentes tanto para curá-los quanto para proporcionar-lhes uma morte tranquila.

Mas com o direito moderno, a eutanásia assume caráter criminoso, uma vez que viola a proteção irrecusável da vida. Concebendo-se a vida como o bem jurídico mais valioso, o bem inalienável e intransferível por excelência, entende-se que ela é o direito primeiro da pessoa humana, direito esse que se deve proteger acima de todos os demais. Tutelado pelo Estado até contra a vontade do indivíduo, julga-se tratar-se de um direito absolutamente indisponível.

Ora, impondo-se como dogma, "a vida a qualquer preço", contribui bem mais para encerrar a discussão do que para promovê-la. Não quero dizer com isso que julgo ilegítimo ou inadequado recorrer aos valores religiosos para refletir sobre a questão da eutanásia. Pretendo apenas assinalar que não é o meu propósito aqui levá-los em conta.




Vida como dever

Seja por julgar que se deve preservar um dom de Deus ou por entender que se tem de fazer jus à dignidade humana, há quem defenda que toda vida humana merece ser vivida.

Ora, tomar a vida como bem supremo implica não só proibir categoricamente a eutanásia, impedindo o paciente de pôr termo a sofrimentos insuportáveis, como também aderir à distanásia, impondo a ele sofrimentos ainda maiores causados pelos tratamentos fúteis e pela obstinação terapêutica.

Considerar a vida o direito primeiro da pessoa humana implica, também, que não se permita que tomem parte da discussão acerca da eutanásia todos os que são por ela afetados (além do paciente, os familiares e amigos, os grupos e segmentos sociais).

E seria possível ainda argumentar que, em nossa sociedade, o "valor sagrado da vida" não evitou que se aceitassem as guerras, a pena de morte e a legítima defesa, sem falar no extermínio dos animais.

É preciso ainda notar que, ao defender "a vida a qualquer preço", adota-se um modo de pensar dualista, opondo-se a vida à morte. Privilegia-se um dos termos da oposição em detrimento do outro, dispondo-se a tudo fazer pela vida contra a morte. Excluindo-se o seu contrário, converte- se então o direito de viver em dever.

O direito de morrer se basearia no princípio de autonomia. Toda pessoa tem o direito de tomar decisões acerca da própria vida


Defensores da eutanásia, por sua vez, argumentam em favor do direito de morrer. Usa-se, atualmente, esta expressão para remeter a situações variadas; a ela se recorre inclusive para referir-se ao direito do paciente de recusar-se às terapias que julgue inapropriadas ou inoportunas e de solicitar medicamentos que lhe aliviem as dores ainda que corram o risco de abreviar-lhe a vida.

O direito de morrer se basearia antes de qualquer coisa no princípio de autonomia. Toda pessoa tem o direito de tomar decisões acerca da própria vida; é capaz de decidir o que ela quer fazer e o que quer que outrem lhe faça. Não cabe, pois, à lei vir tolher tal direito nem limitar a sua liberdade; ninguém sabe melhor do que ela o que lhe convém.

Este mesmo argumento valeria para o aborto provocado e para o suicídio; constituiria um desrespeito ao princípio de autonomia penalizar criminalmente quem decidisse provocar um aborto ou tentasse o suicídio. Assim, toda pessoa gozaria, dentre os seus direitos, do privilégio de dispor de sua existência em quaisquer circunstâncias, desde que, por livre e espontânea vontade, desistisse de viver.

E ainda mais nos casos de doença incurável, acrescida de dores insuportáveis e sofrimentos inúteis. Há quem argumente, porém, que uma coisa é deixar morrer e outra é matar. Entendem por matar qualquer ação ou omissão que vise a pôr termo à vida; e entendem por deixar morrer a não aplicação ou interrupção de um tratamento desproporcional e oneroso, de modo que a natureza possa seguir o seu curso.

Dessa perspectiva, a ortotanásia seria admissível, mas a eutanásia intolerável. Em que pese a atuação de grupos que hoje reivindicam, em vários países, mudanças legais que permitam a sua prática, tendo em vista sempre a eutanásia voluntária, não haveria por que descriminalizá-la.

Importa frisar que, ao distinguir entre matar e deixar morrer, parte-se mais uma vez deste dualismo primeiro, que opõe a vida à morte. Por isso mesmo, torna-se preciso investigar mais de perto o que está em causa quando se fala da vida. E, ainda que o apelo às definições possa parecer, aos olhos de alguns, uma exigência escolar, é imprescindível recorrer a elas para situar o terreno em que se dá a discussão.

Aqui, uma distinção se faz necessária: a que se estabelece entre viver e sobreviver. Lançando mão do pensamento de Nietzsche, não seria desmedido dizer que é a vida, ela mesma, que, vencida, se reduz à sobrevivência, quando não suporta a doença nem tolera a dor. Dessa óptica, apressar a morte de um paciente incurável e em terrível sofrimento, atendendo à sua vontade expressa e manifesta, não equivaleria a tirar-lhe a vida, mas a abreviar-lhe a sobrevivência.

Estudiosos colocam, em outros termos, essa questão, ao distinguir entre estar vivo, no sentido biológico da palavra, e ter vida, na acepção biográfica da expressão. Sustentam que a saúde do paciente não se limita à dimensão físicocorporal de sua existência, mas abrange também seu estilo de vida, seus valores e suas crenças.

Advogam a ideia de que a conduta médica deve levar em conta essas duas dimensões e empenhar-se em aliar a processos da natureza biológica a dignidade de uma história pessoal. Nesse contexto, matar não significaria pôr fim ao estar vivo, mas pôr termo à vida.



Ao trabalhar com duas dimensões da existência humana, essa maneira de ver acaba por pensar o homem como um composto de corpo e mente, aceitando, assim, a distinção que Descartes estabeleceu entre pensamento (res cogitans) e matéria (res extensa).

Enquanto aqui se trata de tentar juntar o que Descartes havia separado, no quadro do pensamento de Nietzsche importa antes de qualquer coisa recusar todo e qualquer dualismo. Em todo caso, tanto a distinção entre ter vida e estar vivo quanto aquela outra entre viver e sobreviver nos remete à questão acerca da qualidade de vida

Para Nietzsche, não é desmedido dizer que é a vida, ela mesma, que, vencida, se reduz à sobrevivência, quando não suporta a doença nem tolera a dor

Num mundo marcado pela crise de valores, amplia-se o debate entre os que advogam o caráter sagrado da existência humana e os que defendem os seus aspectos qualitativos. Enquanto uns julgam que a medicina tem de estar a serviço da vida, outros entendem que ela deve prezar antes de tudo a pessoa. Se aqueles condenam a eutanásia, estes podem vir a admiti-la.


Cabe lembrar, porém, que é a partir dos anos 1970 que a questão da qualidade de vida se impõe. Entre nós, sua emergência coincide com o momento em que a medicina de ponta começa a migrar da esfera pública para o setor privado.

Os hospitais beneficentes, que eram praticamente os únicos centros de excelência no País, cedem lugar às empresas de saúde. Com a crescente incorporação tecnológica, deixa-se de conceber a medicina como um serviço a ser prestado; passa-se a vê-la como um negócio a ser realizado.

De ação filantrópica, ela converte- se em contrato comercial. Torna-se comum discutir, nas ações médicas, a relação de custo e benefício. Entende-se por custos de uma determinada intervenção, antes de qualquer coisa, os financeiros, não se levando em conta os emocionais e psicológicos, os sociais e éticos que possam dela advir.

Entende-se por benefícios acima de tudo os percebidos pela empresa de saúde, relegando-se a segundo plano os que possam reverter para o paciente, os familiares e amigos, os grupos e segmentos sociais. Fazendo- se do paciente um cliente, a ele se oferece, como bens de consumo, a saúde e até mesmo a vida. Aprofunda-se, assim, o abismo que separa saúde e doença, vida e morte.


A eutanásia no Brasil

No Brasil, a eutanásia é considerada uma forma de homicídio. A lei não faz qualquer referência específica a ela, mas a prática é julgada de acordo com o artigo 121 do Código Penal, que pune crimes de homicídio com penas de seis a 20 anos de reclusão. Há projetos tramitando no Congresso para mudar tal situação.


Um deles faz parte da própria reforma do Código Penal. Parte do anteprojeto que está sendo elaborado para dar lugar à legislação penal atual prevê a alteração de dispositivos do Código Penal, legislando sobre a eutanásia em dois itens do artigo 121. No parágrafo 3º, buscando reduzir a pena de reclusão, caso o autor do crime tenha agido por compaixão e a pedido da vítima. No 4º, tentando descriminalizar o ato de deixar de manter a vida de alguém por meios artificiais, caso a morte tenha sido atestada como iminente e inevitável, desde que solicitado pelo paciente ou parentes próximos




Lado financeiro

Daí, o impasse teórico em que nos encontramos hoje. Ou advogamos o valor sagrado da existência humana e acabamos atrelados a posições dogmáticas, que encerram a discussão em vez de promovê-la, ou então defendemos a qualidade de vida e, embora talvez mais aparelhados para refletir sobre questões que se impõem hoje nos debates de Bioética, como a da eutanásia, corremos o risco de engrossar o discurso das empresas de saúde.

E, assim, nos vemos outra vez prisioneiros de um modo de pensar dualista que, ao que parece, não nos deixa alternativa. Ora, a meu ver, se a ideia de que a vida é um dom de Deus a ser preservado nos impede de levar adiante a discussão acerca da eutanásia, a questão da qualidade de vida só merece ser posta se alertarmos para a apropriação que dela fazem os interesses privados.

Atualmente, a morte torna-se um tema a ser evitado. Inexorável, ela representa para o homem, que se quer senhor e dominador da natureza, o maior desafio. Obriga-o a deparar-se com a própria fragilidade; contrange-o a defrontar-se com a finitude. Nos nossos tempos, a situação agrava-se. Na sociedade em que vivemos, o ser humano que está à morte é tido por um insucesso. Nesta sociedade que preconiza a produtividade e o lucro, que prega a eficácia a qualquer preço, que promove o espírito de competição e a lógica da exclusão, o moribundo é visto como um malogro.




É recente na história da medicina a ideia de que é preciso levar a vida biológica custe o que custar até o limite

Imersos nessa atmosfera cultural, é comum que os profissionais da saúde, em particular os médicos, julguem que se deve evitar a morte a todo custo. Estranha à vida, ao ocorrer, ela evidencia um fracasso.

Nesse contexto, compreende-se que os médicos se sintam tentados a abandonar os pacientes terminais, uma vez que a morte foge de seu âmbito de atuação. Compreende-se igualmente que procurem minimizá-la, disfarçando-a graças à tecnologia de ponta.

Compreende-se, por fim, que recorram a tratamentos fúteis, considerando o paciente uma oportunidade terapêutica, um desafio clínico ou mesmo um caso rentável.

Imbuídos da ideia de que a medicina tem por objetivo principal sanar enfermidades, em geral eles se deixam nortear bem mais pelo diagnóstico da doença do que por seu prognóstico. Ocorre, também, que lancem mão de tratamentos que, situados por vezes na fronteira entre o experimental e o já consolidado, não chegam a contribuir para melhorar as condições encontradas.

Desse modo, são levados a cuidar de pacientes terminais guiados bem mais pela tecnologia de ponta do que pelas preferências que estes possam manifestar. Não é raro que, nas suas decisões, tenham em conta a situação socioeconômica dos que estão sob seus cuidados, acentuando com isso a discrepância entre os rentáveis e os não rentáveis.

Mas não é raro tampouco que sejam pressionados por pacientes, que só se sentem tratados quando submetidos aos expedientes modernos mais invasivos, que se limitam a prolongar o processo da morte.

Voltando-se para o sucesso da cura, o avanço médico-tecnológico não tem como contribuir para uma reflexão sobre a morte. Por isso mesmo, cumpre avaliar os benefícios e malefícios por ele produzidos, investigando os aspectos éticos presentes nas situações por ele geradas

Em vez de conceber a morte como um acontecimento a evitar a qualquer preço, torna-se imprescindível inscrevê-la em situações econômico-político-sociais determinadas e em contextos culturais precisos. Torna-se igualmente indispensável discutir a questão da eutanásia, levando em conta aspectos de ordem cultural, social, política e econômica.

É recente na história da medicina a ideia de que é preciso levar a vida biológica custe o que custar até o limite. Tratando a fase terminal como uma luta a qualquer preço contra a morte, tende-se hoje a condenar inúmeros enfermos a um sofrimento sem perspectiva. Recorrendo a procedimentos desproporcionais aos resultados esperados, acabase por confiná-los em centros de terapia intensiva.

Optando por prolongar indefinidamente o processo de morte por que estão passando, criam-se situações desumanas. Pensando segundo categorias abstratas, tais como a saúde e a normalidade, e operando segundo uma lógica dualista, venera-se a vida.



"A vida não é comprida nem é curta: ela tem uma duração própria" 
JULES RENARD






Isolamento

E assim a idolatria da vida acaba por revelar sua outra face; ela é uma verdadeira "cultura da morte". Nas sociedades ditas mais avançadas, impregnadas pela ideia de eficiência, a "cultura da morte" configura-se pelo confinamento das pessoas idosas e debilitadas.

Excluídas do convívio familiar e social, elas acabam com frequência isoladas, relegadas aos cuidados de profissionais treinados para lidarem com vidas desprovidas de valor. Na nossa sociedade, a "cultura da morte" manifesta-se antes de qualquer coisa no descaso pela vida.

E não me refiro aqui aos que morrem no âmbito médico-hospitalar, mas aos milhares de indivíduos a quem se nega o direito de viver. Refiro-me à morte imposta a todos aqueles que se acham abaixo da linha de pobreza.

É notável, pois, a discrepância entre a idolatria da vida de que se beneficiam alguns e a cultura da morte a que se condenam tantos. No limite, são faces da mesma moeda. Se o direito brasileiro considera a eutanásia um crime, por reputar o respeito à vida um valor fundamental, em nosso país há muitos que parecem não se orientar por esse mesmo princípio.

Ignorando a disparidade econômica entre os diferentes segmentos de nossa sociedade, eles não hesitam em pôr em prática uma política de exclusão, que colide justamente com os valores fundamentais que estruturam o seu ordenamento jurídico.

Mas por que não perseguir a utopia de que, numa outra sociedade, todo ser humano teria assegurado o seu direito a uma morte digna, porque veria antes respeitado o seu direito a uma vida digna? Então, aceitando a condição humana em sua fragilidade e finitude, não mais se pensaria em vida e morte como termos opostos. E, nesse quadro, a questão da eutanásia talvez não se colocasse mais em primeiro plano nos debates de Bioética.


FONTE: Portal Ciência  & Vida
Acesse o artigo original em: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/38/artigo147877-1.asp
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